quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Prisioneiros remunerados



Blogmercante(Erik Azevedo)


Danny F II


Esquecidos

Era apenas um entardecer, escuro e tempestuoso numa quinta feira, uma semana para o Natal de 2009, quando o Mercante Danny FII se aproximava do Porto de Trípoli no Líbano procedente do Uruguai para Síria com um grande carregamento de animais vivos, 18 mil cabeças de gado, 10 mil ovelhas, e 83 seres humanos, incluindo 4 passageiros. Este navio era um antigo Car Carrier convertido em uma moderna Arca de Noé.

O Danny FII, não era um navio novo, porem era muito moderno, como a maioria dos navios mercantes atuais. Por isso sua tripulação era de origem internacional: Apenas o Capitão e o Chefe de Máquinas eram Britânicos, os demais eram em sua maioria Paquistaneses, Filipinos, 1 brasileiro, 1 Libanês, 1 Sírio, 4 Uruguaios, e 1 Australiano. E ainda por cima o navio arvorava outra bandeira diferente da nacionalidade do armador (proprietário), bem este era um típico navio mercante dos mais de 90 mil existente pelo mundo comercial, e que são responsáveis por transportar mais de 95% de tudo o que nós consumimos hoje.

Quando o Danny FII estava há 11 milhas náuticas fora de Trípoli, o mau tempo, a escuridão da noite e o navio, se combinaram criando um catastrófico acidente. Os detalhes ate hoje ainda não ficaram claros, mas o navio mudou de rumo, e emborcou.

Vinte e três marinheiros foram resgatados de suas baleeiras, que também emborcaram, animais e homens se afogaram juntos neste caixão submerso. Dos 83 tripulantes e passageiros, apenas 40 sobreviveram, os outros 43 incluindo o Capitão, não tiveram qualquer chance de escapar quando o navio inclinava e afundava.


O Danny FII, foi apenas um dos 36 outros navios que afundaram naquele ano e as 43 vítimas foram mais algumas entre os 2000 mil marítimos que perderam suas vidas no mar apenas naquele ano (2009).

“as industrias marítimas e da pesca, continuam cometendo abusos sistemáticos aos direitos humanos, contra os operários do setor. Pescadores e marítimos, rotineiramente estão trabalhando em condições não mais aceitáveis numa sociedade moderna civilizada” – ITF

Não dá manchete

Por que afinal este acidente não foi destacado nas manchetes de jornais do mundo?

Considere a reação das pessoas se 37 jatos comerciais caíssem todos os anos, ou 37 trens de passageiros descarrilhassem a cada ano de modo regular como é na navegação marítima comercial. No ano de 1910, um jornalista do FR Bullen de Londres, escreveu que considerava essa ‘indispensável ponte do oceano’ (as linhas marítimas) como ‘não mais necessitando de nossa atenção cuidadosa do que a repetição das estações do ano ou a incidência do dia e da noite “. De lá pra cá nada mudou; nós homens e mulheres do mar, continuamos invisíveis.

“O homem que vai para o mar; é um homem em desespero” – Disse uma vez o explorador Marco Polo. Isto é ainda verdade mil anos depois, e talvez ainda pior, provavelmente é um homem pobre, explorado, que pelo menos tem excesso de trabalho e fadiga cronica, tédio além de sofrer perigos como ataques piratas e acidentes; e as taxas de suicido entre os marítimos são até três vezes maiores do que os trabalhadores em terra, e nossa profissão é a segunda mais perigosa do mundo, apenas atrás da pesca industrial.

A Federação Internacional dos Trabalhadores nos Transportes (ITF), quem representa os marítimos no mundo, disse recentemente que “as industrias marítimas e da pesca, continuam cometendo abusos sistemáticos aos direitos humanos, contra os operários do setor. Pescadores e marítimos, rotineiramente estão trabalhando em condições não mais aceitáveis numa sociedade moderna civilizada”.

A Classe Média da sociedade consumidora, pode imaginar que ajuda as pessoas menos favorecidas dos países pobres, quando compra mercadorias provenientes destes lugares, achando que estão distribuindo renda, porem nem imaginam que as chances destas mesmas mercadorias estão sendo transportadas em navios em condições precárias.

Há 2 anos uma jovem praticante de náutica Sul Africana, chamada Akhona Geveza#, foi encontrado seu corpo boiando no mar ao lado do seu navio num porto no mar Adriático. Uma hora depois foi relatado que o Imediato do navio havia estuprado a moça. As investigações feitas por um jornal na Africa do Sul, revelaram que no mesmo navio, outras duas mulheres estavam grávidas por oficiais superiores do navio, e ainda dois jovens praticantes estavam sendo violentados; uma atmosfera de terror e intimidação era este local que deveria ser de trabalho. “Quando chegamos,” disse um dos Praticantes ao jornal, “foi-nos dito que o mar é terra de ninguém e que o que acontece no mar, fica no mar.”

# Ver matéria: Navio dos horrores

Escravos no mar

A Comissão Internacional de Navegação, estima entre 10 à 15% da frota mundial de navios, tem milhares de tripulantes trabalhando em condições de escravidão, com as minimas condições de segurança, longas jornadas de trabalho e um mísero salário, com pouco alimento, espancamentos e estupros. Tudo isto em nome das “Alianças comerciais justas” entre países, para nos comprarmos mercadorias “politicamente corretas”.

O Almirantado Britânico no ano passado acusa os britânicos em geral de sofrerem de “cegueira do mar”; as pessoas em terra não tem qualquer noção do que é a vida no mar. Mas como vão saber? A vida em terra é totalmente oposta à vida marítima. Um exemplo, é que normalmente se espera alguma compensação as famílias dos marinheiros que morreram no Danny FII, pois é assim que acontece em terra, devido à leis trabalhistas, tribunais, e sentenças. Mas os homens no Danny FII viviam em um mundo essencialmente ausente de leis.


“Quando algo da errado no mar, um marítimo não tem como dar meia volta. Enquanto que uma pessoa em terra, esta sujeita à leis nacionais.” Diz Deirdre Fitzpatrick da ITF,. “Eu estou no Reino Unido, o meu problema está aqui, e eu sei onde ir para obter ajuda. Se você é filipino, em um navio de bandeira panamenha, viajando da África do Sul para a Holanda, que a lei vai governar você? Você é um alvo total em movimento. “

Globalização

A indústria marítima é internacional, multinacional, transnacional: Isto é o normal nesta indústria, esta é a mais das complexas atividades existentes, da qual envolve grupos de bancos offshore. Hoje em dia tripulações de cinco ou mais nacionalidades são o padrão em até 60% de toda a frota mercante mundial, e esta frota arvora bandeiras de países diferentes dos seus proprietários. Nos dias de hoje, em média nos portos do Reino Unido, por exemplo, é improvável que estes navios tenham pavilhão nacional, e uma tripulação local. A única coisa que você pode ter certeza é que sua tripulação em geral é composta por pessoas de países estagnados economicamente; e ocasionalmente estes tripulantes, serão mal renumerados, ou pior ainda.

Tommy Molloy, é um inspetor da a ITF, com sede em Liverpool, Molloy passa seus dias visitando qualquer dos cargueiros de todo o mundo que atracam ao cais de Liverpool e Birkenhead. Seu escritório está em uma propriedade de descanso para ex-marítimos dirigido pela Nautilus, um antigo sindicato de marinheiros.

Todos os marítimos velhos aqui são britânicos, e “eles não reconhecem a indústria hoje”, diz Molloy, é como um aposentado dirigir em alta velocidade pelas ruas. Mas ele quase nunca vê um britânico a bordo dos navios que tocam aqui, porque eles custam muito caro, e esperam que os salários sejam pagos em dia, e tenham o direito de estar em um sindicato, mas isto é o que os armadores querem evitar facilmente e legalmente por arvorar uma “bandeira de conveniência”.

É comum ver navios, que são propriedade de, por exemplo, uma empresa japonesa, com pavilhão da Libéria ou Panamá. Este lhes dá direito a operar sob um Estado-nação que fornece nenhuma governança, e que deveria, em prática fazer um rastreamento de armadores ruins, mas isto é quase impossível. Um marítimo australiano de um sindicato na União Européia escreveu: É como “ser capaz de registrar o seu carro em Bali para que você possa conduzi-lo em estradas australianas, sem ter que consertar os freios “ .

Obvio que existam registros em bandeira de conveniência em padrões descentes, e até melhores do que alguns nacionais por ai. Porem alguns registros são no mínimo criminosos; como o da Coreia do Norte, que utiliza de de artifícios ilegais para conceder proteção aos navios sob seu registro, e registros como do Cambodja, da qual muitos navios estão envolvidos com contrabando de armas e drogas, e o registro de Cingapura, que foi fechado por duas semanas e depois foi reaberto na “Mongólia”.

Na indústria marítima atual, é muito comum tripulações trabalharem 18 horas por dia, isto acontece 24 horas e sete dias por por semana. Os navios ficam cada vez menos tempo nos portos, com a conteinerização, um navio pode ser completamente descarregado e carregado em apenas 24hs de operação sem interrupção, e com apenas uns poucos tripulantes acumulando funções, um tripulante de um navio destes fica até meses, sem poder descer do navio. “Eu estive em Nova York, Hong Kong, e Tóquio, mas nós só vimos praça de máquinas o tempo todo durante estas estadias.” – Disse um Chefe de Máquinas.

Prisão com um salário

Segundo Molloy, muitos dos marítimos que ele tem contato, dizem que tem um trabalho que se tornou como uma “prisão com um salário”. Mas Molloy afirma ainda que estão errados, pois nas prisões do Reino Unido, os presidiários tem condições muito melhores do que muitos dos navios da qual ele já visitou.

- The Maritime Charities Funding Commision, quem constatou que “o fornecimento de instalações de lazer, recreação, de serviços religiosos e de comunicação é melhor nas prisões do Reino Unido do que em muitos navios”.

Muitos navios parados em Laid up, fora de operação

Molloy descreve sobre alguns navios que viu. Acomodações mofadas, sofás imundos, frutas apodrecendo e carne. Ouço sempre reclamações de que o rancho – fornecedores (Ship Chandler) – abastecem os navios com alimentos de má qualidade, simplesmente porque eles podem, quando um navio esta no porto por 24 horas. Mas a tripulação não se queixa aqui pois a papelada esta toda em ordem.

Ainda assim, mesmo nos navios melhores, “você verá ate toda a tripulação tendo excedido os seus contratos de permanência. Nós sempre tentamos convencê-los a sair, mas muitas vezes eles não querem. “

A guarnição em geral não têm contratos permanentes, portanto, permanecer no mar por mais tempo, é encarado como vantagem por alguns, pois não teram que se preocupar com procurar um novo emprego, e ficar sem salários, mesmo que isto signifique ficar até anos embarcado. Conheci Filipinos com quatro filhos, e que tinham perdido todos os partos dos filhos e cada aniversário. É o preço que pagam. “Nós chamamos isso de dólar por saudade de casa”, disse um deles.

Muitos marítimos também são abandonados à própria sorte, em portos distantes pelo mundo, sem dinheiro, sem comida, sem meios para retornar ao lar. Estes em sua maioria ficaram a bordo de navios que estão abandonados, ou em “laid up” quando picos de recessão obrigam armadores à encostar navios, ou quando armadores inescrupulosos desaparecem do nada sem pagar suas dívidas.

Um dos piores casos ocorreu no ano de 2002, quando o navio Arabian Victory de bandeira do Belize, estava abandonado em Dubai, e por 45 dias sob temperaturas de 111F (44C), já sem água para beber, sem rancho, e após a tripulação Ucraniana, e Indiana, apelar as autoridades locais, e ao consulado da Índia, e todos os apelos fracassarem, decidem em desespero rumar para a Índia em busca de socorro; O armador iraquiano, tentou prender a tripulação sob a acusação de sequestro do navio.

Este caso é extremo, mas Molloy vê abusos que são alarmantes por serem tão rotineiros. Ele embarcou em um navio de propriedade grega e constatou que a tripulação filipina e os oficiais não tinham sido pagos há meses. “O capitão telefonou para a empresa e disse-me 48.000 dólares. Eu disse, espere, eu nem sequer calculei o total ainda, então eu fiz e que foi de US $ 47.600. Quando falei com os armadores, eles me passaram exatamente este valor. Eles sabiam exatamente o quanto deviam. “

Uma vez, quando Molloy conseguiu o dinheiro para a tripulação, ele recebe uma chamada às 3 da manhã de um membro da tripulação. “Ele estava no aeroporto de Manchester a caminho de casa. Ele disse: “Eu sou o único que se recusou a devolver o dinheiro, logo que você saiu do navio, por isso é que eles me chutaram fora.”

Mas quem é que vale alguma coisa? Quando uma tripulação é abandonada, a ITF pode levar o caso à tribunais especiais marítimos para ter o navio detido e por fim vendido. Isso pode demorar até 12 semanas, mas os marinheiros não têm dinheiro nem comida. Organizações de assistência social como a Sailors Society, Mission to Seafarers, e a Stella Maris, são frequentemente o único consolo para os marítimos explorados. Eles são cruciais, especialmente quando a tripulação não vai deixar o navio por medo de que nunca irão receber o pagamento.

Black list

O problema não é apenas à bordo diz Molloy – “Se me mandarem de volta pra casa sem dinheiro, cortam meu pescoço” – afirma um marítimo do Sri Lanka. Milhares de marítimos pagam para embarcar, se caso não pagarem oque “devem” aos agenciadores, suas famílias em terra correm perigo. Os Russos e Ucranianos, são os primeiros à resistir as práticas sujas destes armadores inescrupulosos, mas os filipinos já aceitam com mais passividade, pois temem a “lista negra”, pratica suja usada por agencias de recrutamento, da qual ninguém admite, mas não negam a existência. Há casos de agencias reterem os certificados originais do tripulante, obrigando os mesmos há permanecerem como escravos deles.

Roy Paul, que cuida de marinheiros filipinos para Trust the ITF Marítimos, diz que é prática comum. “Você vai ter alguém que já trabalhou para um navio para quatro ou cinco anos, então fazem uma queixa contra o tripulante, por exemplo, um capitão racista. De repente, a agência não tem navio para ele, embora ele já tenha quatro anos no mesmo navio. “

As condições que Molloy vê todos os dias iriam causar indignação nas pessoas em terra. Na Coréia do Sul, o Capitão indiano, Jasprit Chawla, ficou preso por 18 meses após seu navio que estava atracado ser abalroado por uma barcaça, óleo vazou para o mar. Ele só foi liberado depois de uma campanha prolongada. ‘Você aterrissa um avião no mar e você é um herói’, diz Paul. “Você chega de navio em terra, e você é um criminoso.”

Claro, há muitos armadores de navios responsáveis. Como Deirdre Fitzpatrick aponta, “Eles sabem que o seu bem mais valioso é os seus empregados.” Eles também sabem que há uma escassez mundial de marítimos ( um défice 33.000 marítimos na última contagem).

Ativistas esperam que esta escassez irá colocar pressão sobre a indústria para limpar seus atos. Mas muito mais é necessário. Seria bom que quando as nações comerciais fechassem seus acordos comerciais, obrigassem que todos os navios que transportassem suas mercadorias, tivessem acordos assinados com a ITF, ou ainda evitassem usar navios sob bandeiras de conveniência; mas sem qualquer forma de monitoramento, por parte das nações, estes acordos são apenas um gesto vazio. [Mas] eu espero que ele não será demasiado longo demais o tempo, antes que possamos considerar o apoio prático que iria oferecer os sindicatos das indústrias marítimas e de navegação de modo que os marítimos também possam ver os benefícios do Comércio Justo ‘.

Nenhum dos marítimos que conheci vi esse otimismo. Em um centro para marítimos, perguntei para Menandro, ele é cozinheiro de um navio, se ele mandaria o filho para o mar. Antes Menandro, era um funcionário público, nas Filipinas, mas a economia entrou em colapso e só as agências de navegação estavam contratando. Ele agora passa seus dias em cima de navios, transportando de tudo o que precisamos para sobreviver. Menandro é um homem educado e articulado, mas sua resposta é breve. ‘Não, não e não. Eu estou fazendo isso para que ele não precise. Isto não é vida. “

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Baseado no artigo do jornal, The Telegraph, recomendado pelo ON Daniel Maykot;

By Rose George;

http://www.telegraph.co.uk/news/worldnews/8273847/Sea-no-evil-the-life-of-a-modern-sailor.html

Sobre o navio Danny FII

O navio apesar de arvorar bandeira Panamenha, estava registrado em Montevidéu, pertencente ao armador Rachid Fare Enterprises, e agenciado pela Schandy.

O ‘Danny F II’, operado pela Enterprises Rachid Fares na Austrália, foi um dos navios de uma série de transportadores de gado que falharam nas inspenções da Australian Maritime Safety Standards Authority alguns anos atrás, e suas operações foram transferidas para a América do Sul.

Entre as falhas encontradas durante uma detenção AMSA na Austrália foram:

“Antepara entre o reservatório de óleo combustível e tanque de água de lastro furado, antepara entre o reservatório de popa e espaço leme corroídos e escondidos, Luzes de navegação e formas inservíveis, equipamentos de rádio VHF com defeito, porta Estanque às intempéries e deck ar arranjo de fechamento do tubo com defeito”.

O “Danny F II” tinha sido usado para o transporte de ovelhas da Tasmânia para o Oriente Médio.


Segundo o relatório oficial da autoridade portuária de Trípoli, este era o segundo navio que naufragou na costa libanesa naquela mesma semana, o navio Sala II, de bandeira do Togo, afundou à 70 km de Tiro na sexta feira.

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